segunda-feira, junho 09, 2008

Carta de um Moinho




Faralhão, Herdade da Mourisca, 14.05.2008


Caro Sr. Presidente da Junta de Freguesia do Sado,


O meu nome é Moinho de Maré da Mourisca, sou uma peça de arqueologia industrial única, nascido em 1601, já lá vão 407 anos, testemunho dos conhecimentos da engenharia medieval, sou um bom exemplo do aproveitamento de uma fonte de energia renovável e não poluente.


Vivo na Herdade da Mourisca, localizada na Freguesia do Sado, que o Sr. Preside, em plena área de Reserva Natural do Estuário do Sado.


Estou rodeado por uma magnífica área de sapal e de antigos arrozais. Vejo, um pouco mais à frente as antigas salinas, sento-me no meu irmão “Rio Sado” e convivo diariamente com os meus vizinhos; perna-longas, pilritos, guarda-rios, patos-reais, cegonhas e flamingos, que nele habitam. Ao longe vejo o topo das chaminés da zona industrial e penso o que será feito dos outros moinhos de maré que lá existiam; o de Mitrena, Tróia e Praias-do-Sado…






Apesar da minha idade e das minhas visíveis mazelas, o tempo não apagou as minhas memórias. Lembro-me quando a este lugar vinham gentes de todo o lado, trazer cereais para eu moer, em troca de farinha que era e é tão fundamental para a subsistência do povo. Era um frenesim a chegada dos pequenos saveiros carregados de Ostras do Sado e de peixe acabadinho de pescar. O meu átrio servia de cais de cargas e descargas tão bem retratados pelas fotografias do meu admirador Américo Ribeiro.


Nos anos sessenta fui abandonado. Fui órfão durante quase três décadas. Senti-me nú, perdido, inútil. Senti que a minha importância estava reduzida a escombros, destelhado, esventrado, humilhado. Esqueceram-se de mim? De quando em quando vinham pessoas tirar fotografias às minhas ruínas, outros choravam comigo lembrando o nosso passado comum; pessoas, tradições, alegrias e tristezas, vidas…


O destino quis que tudo mudasse. Certo dia surgiu uma boa nova. Fui adoptado, fui comprado, alguém quis que eu voltasse a ser eu. Aqueles que se lembravam de mim de outros tempos regozijaram. Vou voltar a ser eu! Fui reconstruído, pintado. Uau, estou magnifico! Todos me admiram novamente, estou radiante, a minha brancura contrasta com o azul do céu, com o verde do rio que reflecte o sapal. Lindo. Todos pensam em mim. Fez-se de novo um corrupio para me visitarem e verem como eu funciono, tenho um moleiro e tudo, o saudoso Ti Manel. Tenho um milharal, e uma horta.


Tenho um parque-de-merendas e casas de banho. Deram-me uma padaria onde se faz pão à moda antiga e se come quentinho acabadinho de sair do forno de lenha. Vejo os barquinhos a chegar com os ranchos de “minhoqueiros” e “minhoqueiras”, os pescadores.”- O que traz hoje? Choquinhos? Robalos? Que delicia. Aqueles que choraram comigo, organizaram uma festa em minha homenagem e deram-lhe o meu nome “Festas do Moinho de Maré da Mourisca”.






Agora sonham em tornar-me exactamente naquilo que eu fui antigamente. Querem que eu saia nas revistas e jornais por ser importante. Querem dar-me uma salina, um viveiro de peixe, um restaurante, um centro de acolhimento para pernoita daqueles que me querem visitar e estudar, uma quinta e uma horta, onde os meus amigos de hábitos e conversas dos velhos tempos agora reformados passem os dias ocupados…


Contudo Sr. Presidente António Augusto, não sei se esta minha vontade de viver como antigamente vai durar muito. Ouvi dizer que para além dos que me têm, existem outros que também me querem, esses não são daqui da terra. Até me disseram que queriam fazer de mim um restaurante, imagine Sr. Presidente um restaurante?!...


Fala-se que as minhas Festas até podem acabar e que as minhas portas se podem fechar novamente e que os portões terão acesso restrito, e que, e que, e que… mas afinal quem são estas pessoas? Que sabem elas de mim, e dos meus amigos e das nossas tradições, do nosso passado?





É um apelo que lhe faço Sr. Presidente eu sou bonito e importante, tudo o que há à minha volta é bonito e importante, tudo o que eu quero que venha a existir à minha volta vai-me tornar ainda mais bonito e cada vez mais bonito e importante, por favor não deixe que o meu destino e as minhas historias e das gentes desta terra sejam esquecidas e/ou rentabilizadas por vendilhões que se querem apoderar de nós…


Agradeço antecipadamente Sr. Presidente, por tempo e atenção dispensados, e envio os melhores cumprimentos,


Moinho de Maré da Mourisca

1 comentário:

José Rasquinho disse...

Amigo Moinho,
partilho as tuas preocupações, e espero, como tu, que as "pessoas importantes" que leiam a tua carta meditem umas noites sobre o que dizes!!!!!!
Espero poder continuar a visitar-te!